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União não pode cobrar contribuições previdenciárias, entre novembro de 2019 e janeiro de 2020, de Servidores portadores de doenças incapacitantes, segundo as novas regras estabelecidas pela EC 103/2019

Por Luis Fernando Silva*

Contribuições previdenciárias decorrentes da modificação imposta pelo art. 1º, da EC nº 103, de 2019, que revogou o § 21, do art. 40, da Carta da República. Cobrança de valores relativos aos proventos devidos nos meses de novembro e dezembro de 2019, e respectivo 13º salário. Inobservância da garantia de anterioridade nonagesimal. Inconstitucionalidade.

Introdução

No último dia 18 de outubro o Governo Federal fez circular A Mensagem nº 563622, expedida pelo Ministério da Economia e direcionada aos dirigentes de recursos humanos dos órgãos e entidades da administração pública federal, dando conta de que a Secretaria da Receita Federal do Brasil teria emitido a Nota COSIT/SUTRI/RFB nº 164, de 5 de abril de 2021, através da qual orienta que a revogação do § 21, do art. 40, da Carta da República - operada pela Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019 -, não teria criado tributo novo, mas sim apenas trazido para a condição de sujeito passivo da incidência tributária os aposentados e pensionistas cujos proventos tenham valor superior ao “teto” do RGPS/INSS e inferior ao dobro desse “teto”, que antes eram albergados pelo dispositivo constitucional em referência, haja vista sua revogação.

Ao ver da referida manifestação, portanto, a revogação do § 21, do art. 40, da CF, não atrairia a incidência da garantia da anterioridade nonagesimal porque o que dele emergia, antes, nada mais era do que uma espécie de isenção tributária, que apenas dispensava do pagamento da contribuição previdenciária os aposentados por incapacidade permanente cujos proventos estivessem localizados na faixa até o dobro do “teto” do RGPS/INSS, de modo que não existindo mais a base legal para essa isenção, a imposição tributária operaria efeitos imediatamente, ou seja, já a partir da folha de pagamento relativa ao mês de novembro de 2019.

Logo, como a cobrança em questão apenas teria ocorrido a partir da folha de pagamento relativa ao mês de janeiro de 2020, os aposentados em questão seriam devedores das contribuições previdenciárias que não foram cobradas nos meses de novembro e dezembro de 2019 e gratificação natalina respectiva, sendo esse, então, o objeto da referida Mensagem nº 563622, anunciava a sua cobrança em 1 (uma) única parcela, no mês de outubro em curso.

Conquanto a matéria veiculada pela mencionada Mensagem nº 563622, tenha sido objeto do posterior Comunica SIGEPE nº 563663, de 18 de outubro, que “valores incluídos como desconto, via apuração especial, na sequência 8, não constarão da versão final da folha de outubro”, é importante destacar que a mesma mensagem eletrônica informa que “novas orientações sobre os procedimentos operacionais para desconto serão expedidas nos próximos dias, em especial quanto à possibilidade de parcelamento dos valores devidos”, de modo que o assunto não pode ser dado como superado, justificando a emissão urgente da presente Nota Técnica.

Análise das razões de direito envolvidas

Conforme vimos acima, a questão veiculada através da Mensagem nº 563622, do Ministério da Economia, diz respeito à contribuição previdenciária devida por servidores públicos federais aposentados por incapacidade permanente para o trabalho (e pensões daí decorrentes), haja vista a garantia que lhes era deferida pelo § 21, do art. 40, da Carta da República, na redação que lhe fora dada pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005.

Antes de prosseguir, portanto, importa relembrar que os aposentados e pensionistas do serviço público apenas passaram a ser sujeitos passivos da incidência de contribuição previdenciária para o financiamento de suas próprias aposentadorias e pensões com a promulgação da Emenda Constitucional nº 41, de 2003, que fez acrescentar ao art. 40, da CF, o seguinte § 18, ainda vigente:

Art. 40 (...)\ § 18. Incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos. (grifamos)

Pois bem, em consequência do que veio prever o suso transcrito § 18, do art. 40, da CF, em 18 de junho de 2004 era sancionada a Lei nº 10.887, cujo art. 5º assim veio definir:

Art. 5º Os aposentados e os pensionistas de qualquer dos Poderes da União, incluídas suas autarquias e fundações, contribuirão com 11% (onze por cento), incidentes sobre o valor da parcela dos proventos de aposentadorias e pensões concedidas de acordo com os critérios estabelecidos no art. 40 da Constituição Federal e nos arts. 2º e 6º da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que supere o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social. (grifamos)

Assim é que a partir da EC nº 41, de 2003 (e ainda mais exatamente da Lei nº 10.887, de 2004), todos os aposentados e pensionistas teriam passado a ser sujeitos passivos da incidência tributária ora em análise, nos mesmos percentuais aplicáveis aos servidores em atividade, mas essa contribuição incidiria apenas sobre a parcela dos proventos que ultrapassasse o “teto” de contribuições para o RGPS/INSS.

Em 5 de julho de 2005, entretanto, era promulgada a Emenda Constitucional nº 47, que dentre outras providências fez inserir ao art. 40, da Lei Maior, o seguinte § 21:

Art. 40 – (...)\ § 21. A contribuição prevista no § 18 deste artigo incidirá apenas sobre as parcelas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 desta Constituição, quando o beneficiário, na forma da lei, for portador de doença incapacitante. (destacamos)

Ou seja, os aposentados portadores de doenças incapacitantes, aos quais o § 18, do art. 40, da CF (na redação dada pela EC 41/2003) havia atribuído a qualidade de sujeito passivo da contribuição previdenciária, e que num primeiro momento passaram a contribuir sobre o valor dos proventos que excedesse ao “teto” do RGPS/INSS, a partir de 2005 passaram a ter essa contribuição incidente apenas sobre a parte dos proventos situada acima do dobro do mesmo “teto”.

Sobreveio, então, em 12 de novembro de 2019, a Emenda Constitucional nº 103, cujo art. 1º veio revogar o anterior § 21, do art. 40, da Carta da República, de tal modo que os servidores aposentados que eram portadores de doenças incapacitantes, voltaram a ter a obrigação de pagar contribuições previdenciárias sobre o valor dos proventos que ultrapasse o “teto” do RGPS, e não mais sobre o valor que ultrapasse o dobro desse “teto”.

Questão que se coloca, então, é saber se essa mudança – que evidentemente eleva a incidência tributária sobre esse grupo de servidores -, deve respeito ao princípio da anterioridade nonagesimal ou não, sabendo-se desde já que a Secretaria da Receita Federal do Brasil teria expedido entendimento segundo o qual a nova base de incidência se aplicaria de imediato, resultando daí a já referida Mensagem nº 563622, expedida pelo Ministério da Economia.

Vejamos e tão, neste sentido, o que diz o art. 150, III, “c”, da Carta da República:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:\ (...)\ III - cobrar tributos:\ (...)\ b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; \ c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (grifamos)

Com efeito, o princípio da anterioridade tributária tem por objetivo fundamental evitar a surpresa do contribuinte com a cobrança de novos tributos (ou a majoração de tributos já existentes), de modo a assegurar-lhe a necessária previsibilidade, evitando assim que a exação tributária venha a lhe trazer transtornos repentinos e inadvertidos, capazes de impactar severamente sobre o seu planejamento financeiro.

É o que leciona ROQUE ANTONIO CARRAZZA1, para quem:

(...) o princípio da anterioridade é corolário lógico do princípio da segurança jurídica. Visa evitar surpresas para o contribuinte, com a instituição ou majoração de tributos. De fato o princípio da anterioridade veicula a ideia de que deve ser suprimida a tributação surpresa (que afronta a segurança jurídica dos contribuintes). Ele não permite que, da noite para o dia, alguém seja colhido por uma nova exigência fiscal. É ele, ainda, que exige que o contribuinte se depare com regras tributárias claras, estáveis e seguras. E, mais do que isso: que tenha o conhecimento antecipado dos tributos que lhe serão exigidos ao longo do exercício financeiro, justamente para que possa planejar sua vida econômica.

Assim é que emergem do citado art. 150, III, da Carta Magna 2 (dois) diferentes tipos de anterioridade, quais sejam a anterioridade de exercício (que impede a cobrança do tributo dentro do mesmo exercício fiscal em que for instituído ou majorado) e a anterioridade nonagesimal (que impede a sua cobrança antes do decurso de 90 (noventa) dias a partir da data da publicação da norma legal que o instituiu ou aumentou, garantias que se somam em favor do contribuinte, de modo que um tributo instituído em 12 de novembro de determinado ano, por exemplo, segundo a anterioridade de exercício poderia ser cobrado já no dia 1º de janeiro do ano seguinte, mas em razão da anterioridade nonagesimal só poderá ser efetivamente cobrado a partir do momento em que fluir o prazo de 90 (noventa) dias desde a lei que o instituiu ou aumentou.

Com efeito, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 939-7/DF, o Excelso Pretório consagrou o entendimento de que o princípio da anterioridade constitui garantia individual fundamental do contribuinte, sendo assim cláusula pétrea a impedir qualquer espécie de mitigação ou mesmo supressão, consoante prevê o art. 60, § 4º, IV, da Lei Maior.

Ora, não há dúvidas de que as contribuições previdenciárias devidas por servidores federais para o financiamento do respectivo Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), integram a espécie tributária denominada “contribuição social”, razão pela qual não devem restar dúvidas de que a elas se aplica a anterioridade nonagesimal prevista no art. 150, III, “c”, da Carta Política.

Pois bem, colocada a questão nestes termos, é imperioso afirmar que ao revogar o § 21, do art. 40, da Constituição da República, o art. 1º, da Emenda Constitucional nº 103, de 2019, impôs aos servidores aposentados portadores de doenças incapacitantes uma oneração tributária evidentemente maior, já que na situação anteriores estes servidores aportavam essas mesmas contribuições apenas sobre o valor dos proventos que ultrapassasse o dobro do “teto” de benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

Veja-se abaixo o exemplo de um servidor aposentado, portador de doença incapacitante, que em novembro de 2019 percebia proventos no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), ocasião em que o “teto” do RGPS era de R$ 5.839,45 (cinco mil, oitocentos e trinta e nove reais e quarenta e cinco centavos):

Como se percebe facilmente, na situação anterior à EC 103, de 2019, o servidor do exemplo aportava contribuições previdenciárias mensais de R$ 915,32 (novecentos e quinze reais e trinta e dois centavos), passando a pagar essas mesmas contribuições, após a EC nº 103, de 2019, no importe mensal de R$ 1.557,66 (um mil, quinhentos e cinquenta e sete reais e sessenta e seis centavos), o que importou numa tributação majorada em R$ 642,34 (seiscentos e quarenta e dois reais e trinta e quatro centavos), o que representa um incremento percentual de 70,17% (setenta vírgula dezessete por cento).

Ora, é evidente que mesmo que a majoração tributária em questão não haja decorrido da instituição de uma nova contribuição social ou da majoração nas alíquotas anteriormente vigentes, claro está que ela decorreu de evidente modificação na base de cálculo da contribuição, operação essa que também deve respeito à anterioridade nonagesimal, até porque não consta dentre as exceções constitucionais à incidência da anterioridade de exercício ou nonagesimal, cujas hipóteses estão descritas na tabela abaixo:

Aliás, o § 1º, do art. 150, da Carta Magna é claro e expresso ao dispor sobre quais espécies tributárias não devem obediência à anterioridade de exercício ou à anterioridade nonagesimal, senão vejamos:

Art. 150 – \ (...)\ § 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I.

Já o § 6º, do art. 195, da CF, traz mais uma exceção à incidência do princípio da anterioridade, estabelecendo que as contribuições sociais não devem observância à anterioridade de exercício, mantendo apenas a submissão à anterioridade nonagesimal:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:\ (...)\ § 6º As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, "b".

Ora, sabendo-se que os elementos constitutivos dos tributos, lato sensu, são o fato gerador, a base de cálculo, a alíquota e os sujeitos passivos, soa evidente que qualquer modificação em um desses elementos constitutivos faz emergir o direito do contribuinte à anterioridade, seja ela de exercício ou nonagesimal, observadas apenas as exceções expressamente contidas no Texto Constitucional.

Pois bem, o que tivemos na situação em exame foi a modificação da base de cálculo sobre a qual incidia a contribuição previdenciária devida por servidores aposentados portadores de doenças incapacitantes, que deixou de ser a faixa dos proventos que superasse o dobro do “teto” do RGPS (hoje R$ 12.867,14), passando a ser a faixa dos proventos que supere apenas o “teto” do RGPS (hoje de R$ 6.433,57), o que importa reconhecer que a revogação do § 21, do art. 40, da Carta da república, importou em sensível ampliação dessa base de cálculo.

Logo, impõe-se a fiel observância ao princípio da anterioridade nonagesimal como medida de proteção ao contribuinte contra transtornos repentinos e inadvertidos, capazes de impactar severamente sobre o seu planejamento financeiro, que do contrário lhe seriam impostos pela imediata exigibilidade dos novos valores das contribuições sociais em tela.

Conclusão

A revogação do § 21, do art. 40, da CF (promovida pela EC nº 103, de 2019), importou na ampliação da base de cálculo da contribuição previdenciária devida por servidores públicos aposentados que sejam portadores de doenças incapacitantes, o que atrai a incidência do princípio da anterioridade nonagesimal, esculpido no art. 150, III, “c”, da Carta da República, de tal sorte que os efeitos da aludida modificação constitucional somente poderiam ser sentidos a partir da folha de pagamento do mês de fevereiro de 2020, eis que promulgada a EC nº 103 em 12 de novembro de 2019.

Logo, será inconstitucional qualquer iniciativa governamental destinada a conferir à debatida modificação constitucional efeitos retroativos à data da promulgação da EC nº 103, de 2019, cumprindo às entidades representativas de servidores públicos o ajuizamento de medidas judiciais capazes de impedir que a propalada inconstitucionalidade venha a operar efeitos no mundo jurídico, ou de revertê-los, caso esses efeitos já tenham sido gerados.

É como opinamos.

SMJ.

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* Luis Fernando Silva é advogado (OAB/SC 9582) e fundador do SLPG Advogados.

1 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 18 ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.170;

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